Parafraseando Murakami no seu conto Um Conto Folclórico para a minha Geração: Uma Pré-história do Capitalismo Tardio: quando se conta uma história o mais importante é capturar o tom. Há mais verdade neste do que na sequência exacta de factos colocada de uma forma que não consiga conjurar o tom certo


A história que conto passa-se em dois momentos, um em 2016 e outro ontem, junho de 2021, e ambos vêm com o necessário filtro da memória e das emoções vividas. Tentarei convocar o tom certo.

Em 2016, no verão, desloquei o braço numa queda feia enquanto me aventurava pelo Gerês. As dores de deslocar um braço são do mais intenso que já experienciei. Eventualmente o membro foi ao sítio a caminho do hospital de Braga, onde aguardei cerca de 4 horas para ser atendido. O médico disse que o braço já tinha ido ao sítio – o que eu já sabia – para tomar algo para as dores e descansar. Voltei para a Marinha Grande e, na noite seguinte, fui às urgências do Centro de Saúde onde me passaram baixa e recomendaram apenas repouso. Mas o problema mantinha-se. Eu tinha deslocado o braço e, embora este tivesse ido ao sítio, continuava com dores e sentia-o fragilizado. Acabei por ir a uma fisioterapeuta privada da minha confiança, onde tive um tratamento espectacular e fiquei com o braço impecável durante 5 anos.

Ontem, a praticar desporto desloquei o braço outra vez. Dores horríveis, braço volta ao sítio, blá blá blá, o mesmo da primeira vez. Fui directo para o Centro de Saúde da Marinha Grande…

Sou asmático e passei a minha infância e juventude – anos 1990 e 2000 – a ir muitas vezes às urgências da Marinha Grande, às mais diversas horas, com crises de falta de ar e fui quase sempre muito bem atendido num serviço de saúde que, na altura, dava como garantido. As coisas mudaram e aparentemente as urgências na Marinha acabaram.

Assim que cheguei disse à senhora da recepção que tinha deslocado o braço, ao que ela me respondeu “não temos médico”. Como assim? Não têm médico? E não me podem fazer nada? Enviar para Leiria como urgência? “Se não tiver ninguém que o possa levar podemos pedir aos bombeiros, mas terá de aguardar um bom bocado”.

O meu irmão levou-me ao Hospital de Leiria.

Já alguém leu Kafka? Mais concretamente O Processo?

Fui recebido no hospital, colocaram-me a pulseira amarela, esperei e fui atendido pelo doutor que me disse “o braço já foi ao sítio” e logo começaram os flashbacks de Braga 2016. Mandou-me para a sala do raio x. Eu estava suado, de t-shirt e calções – tinha estado a fazer desporto – durante a espera. Eventualmente o frio e as dores apoderaram-se de mim. Tremia dos pés à cabeça quando vi uma enfermeira passar e lhe pedi algo para me tapar, “não sou deste departamento” disse ela. Não sei se haveria algo menos humano para dizer. O que fez com que me mantivesse com frio, dores e uma crescente revolta até à hora do raio x.

Depois do raio x voltei ao doutor para saber o que fazer. “Bem, o braço já está no sítio”, disse outra vez, “agora tome QUALQUER COISA para as dores e pode ir” ao que eu perguntei: qualquer coisa? Tipo Ben-u-ron? “Sim, sim, pode ser”. Então e não preciso de fisioterapia? “Não, não, descanse e não faça este movimento” disse ele enquanto gesticulava o braço para cima. De notar que, se eu não tivesse feito qualquer pergunta, teria saído do Hospital com um simples “tome QUALQUER COISA para as dores”. Não que tenha saído com muito mais do que isso…

Eu sei que as comparações com Kafka são quase tão cliché como as invocações Orwellianas, mas neste momento só consigo mesmo pensar n’ O Processo. Na forma tão trágica que se torna quase cómica com que as entidades públicas que deviam estar ao serviço do cidadão desumanizam por completo o ser que têm à frente. Sim, senti-me completamente desumanizado: pela recepcionista que disse que não havia médico, pela enfermeira que não me deu nada para me cobrir do frio e pelo médico que me mandou tomar QUALQUER COISA para as dores.

Convém fazer uma declaração de intenções e dizer que sou de esquerda, de esquerda quase radical até, isto não é um texto anti SNS. Isto é um pedido de socorro, um SOS, para que haja um investimento maior no Sistema Nacional de Saúde. Podem alegar que agora estamos na pandemia. Mas esta situação não é de agora. Os anos 1990 e 2000 já lá vão e cada vez é mais difícil ser atendido de urgência…

A culpa não é do médico de 2016 nem da recepcionista, nem da enfermeira, nem do médico de 2021. É de um sistema que vai desumanizando os trabalhadores na área da saúde, que por sua vez desumanizam os pacientes.

João Franco
Marinha Grande